BRASIL E O MERCOSUL.
- Este artigo constitui um exercício de análise prospectiva sobre o itinerário futuro do MERCOSUL, com base numa discussão não exaustiva dos principais problemas que se colocam para sua evolução política e econômica, tanto do ponto de vista interno como externo. A despeito de um enfoque o mais possível "desnacionalizado" e tendencialmente "objetivo", o autor considera inevitável que uma perspectiva propriamente brasileira insinue-se no decorrer do ensaio, o que deve ser honestamente assumido como decorrência natural do estudo desses problemas a partir da realidade brasileira, assim como, compreensivelmente, do exame de outras análises conduzidas em sua maior parte em seu país de origem. O mesmo ocorreria, mutatis mutandis, no caso de uma discussão efetuada a partir da Argentina, por uma analista que operasse sua própria seleção de problemas e oferecesse uma visão de futuro com base na "percepção" dos temas "prioritários" do processo de integração tal como visto no âmbito de sua própria "economia política" doméstica.
- Independentemente, porém, da margem do Prata a partir da qual o analista instale sua luneta de observador, parece claro que qualquer exercício de "futurologia" em torno do MERCOSUL deve, antes de mais nada, delimitar as opções econômicas e comerciais em jogo e as propostas políticas disponíveis em termos de organização institucional, do ponto de vista de seu desenvolvimento interno. Caberia considerar, em seguida, os elementos do relacionamento externo do esquema integracionista, notadamente no que se refere ao processo hemisférico e à continuidade do processo de aproximação com a União Européia, para poder projetar, finalmente, os cenários possíveis ou prováveis da evolução futura do MERCOSUL. Do ponto de vista deste observador, mas respeitando-se igualmente o caráter "objetivo" dos números relativos e das "relações de força" em jogo, parece evidente, em qualquer hipótese, que o itinerário de médio e longo prazo do MERCOSUL dependerá, em grande medida, das escolhas que faça seu mais importante protagonista, a saber, o Brasil. A propósito, uma análise operada a partir da outra margem do Prata poderia observar que, sem a colaboração e a cooperação ativas de seus demais sócios no empreendimento, o Brasil não poderia levar o MERCOSUL a nenhum destino diverso daquele a ser decidido de comum acordo, uma vez que os atuais mecanismos decisórios podem, de fato, obstar a qualquer itinerário estabelecido unilateralmente. Não obstante essa realidade, do ponto de vista de suas possibilidades efetivas e potenciais de desenvolvimento, não se poderia recusar o fato de que o Brasil detém, de fato, a chave estratégica do itinerário político e econômico do MERCOSUL no século XXI, mesmo considerando-se que esse país não ostenta, objetivamente, nenhum comportamento econômico "imperial" e que ele se tenha despido de qualquer veleidade política unilateralista ao engajar-se decisivamente no projeto integracionista com a Argentina a partir de meados dos anos 80.
- Adotando-se uma espécie de "futurologia do bom senso", caberia examinar, assim, as opções extremas que se oferecem ao MERCOSUL para tentar delimitar, mais adiante, as propostas razoáveis abertas a seu desenvolvimento político e institucional. Deve-se advertir que, de um ponto de vista metodológico, tais "opções" e "propostas" não são consideradas como o resultado de simples medidas tópicas de administração da união aduaneira em formação adotadas pelos dirigentes e "executivos" do MERCOSUL, mas como possíveis vias de evolução futura, a partir de tendências imanentes e de forças "estruturais" determinadas a partir do próprio processo de integração, em suas "linhas profundas" de desenvolvimento. (1)
- Sem inclinar-se para qualquer tipo de análise conjuntural, pode-se no entanto reconhecer que, no curto prazo, o MERCOSUL não parece politicamente ameaçado por alguma catástrofe política irreversível, nem por algum conflito econômico de grandes proporções, a não ser por suas próprias escaramuças "verbais" e comerciais, de pouca magnitude intrínseca, aliás. No que se refere às primeiras, elas parecem derivar do confronto de uma retórica ideologicamente livre-cambista para consumo externo e de algumas práticas internas, abertas ou veladas, de protecionismo explícito ou implícito, para contentar ou apaziguar setores específicos da economia "doméstica" ameaçados de deslocamento pelo ritmo da integração. A necessidade de proteção dos empregos nacionais nos setores sob risco é, evidentemente, uma mola propulsora dessas contradições entre o programa doutrinário da integração ao qual todos aderem sem restrições e o pragmatismo mais discreto da proteção (justificada a título de "exceções").
- Quanto às disputas comerciais por acesso recíproco aos mercados dos países membros e as acusações mútuas de "comércio desleal" entre parceiros a começar pela própria magnitude da TEC ou pela "legitimidade" de algumas barreiras não-tarifárias, remanescentes ou "construídas" durante ou após o período de transição , elas são inevitáveis, na medida em que correspondem a uma situação de abertura progressiva num contexto de indefinição de normas estritas de competição e de ausência parcial ou total da "harmonização das políticas macroeconômicas", objeto, como se sabe, do Artigo 1º do Tratado de Assunção. Ao não ter sido realizada essa harmonização, torna-se evidente o potencial de desentendimentos entre os membros nos mais diversos campos: níveis da TEC, exceções aceitáveis, ritmo da convergência, barreiras ao intercâmbio, normas industriais e regulamentos técnicos, padrões e formas de proteção à propriedade intelectual, medidas de defesa comercial, regras aplicadas aos setores ditos "sensíveis", enfim, questões próprias a toda e qualquer união aduaneira em formação. O contexto fin-de-siècle de crise financeira internacional ou as preocupações no Brasil e na Argentina com o desequilíbrio das transações correntes não ajudam, por certo, no desmantelamento de alguns dos obstáculos nacionais erigidos no caminho da consolidação dessa união aduaneira, mas os elementos centrais desta análise devem ser as "tendências pesadas" do processo de integração, não seus elementos passageiros.
- Quais seriam, nesse sentido, as alternativas dicotômicas colocadas como promessa ou como ameaça no futuro do MERCOSUL? Eles parecem conformar duas perspetivas bem definidas, ainda que aparentemente pouco factíveis, de desenvolvimento político-institucional. Por um lado, na vertente "otimista", a realização plena do projeto integracionista original, ou seja, um mercado comum caracterizado pela "livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos", consoante os objetivos do Artigo 1° do Tratado de Assunção, ainda não realizados, diga-se de passagem. Por outro lado, no extremo "pessimista", a diluição do MERCOSUL numa vasta zona de livre-comércio hemisférica, do tipo da ALCA, de conformidade com o programa traçado em Miami em dezembro de 1994 e confirmado em Santiago em abril de 1998.
- Antes de discutir se tais opções extremas seriam factíveis, realizáveis no curto ou médio prazo ou mesmo credíveis no atual contexto político-diplomático e econômico da região, vejamos o que significaria o desenvolvimento de uma estratégia intermediária de menor custo político e econômico para o Mercosul, que seria representada por uma zona de livre-comércio geograficamente menos ambiciosa, como a proposta Área de Livre-Comércio Sul-Americana (ALCSA). Esse espaço de liberalização comercial de âmbito exclusivamente sul-americano não tinha recebido, até os mais recentes progressos da ALCA, a continuidade esperada pelos seus proponentes originais e parecia até há pouco colocado numa espécie de limbo político pelos negociadores da integração. Para registro histórico, lembre-se que esse projeto tinha sido apresentado no Governo Itamar Franco como "Iniciativa Amazônica" pelo então chanceler Fernando Henrique Cardoso, depois ampliado em escala continental pelo Chanceler Celso Amorim. Nas duas modalidades, se previa a negociação, diretamente pelo MERCOSUL e sua ulterior protocolização pela ALADI, de amplos acordos de liberalização comercial e de complementação econômica entre os países do MERCOSUL e os demais países do continente. Tal como apresentado pelo Brasil, ele não despertou entusiasmo nos demais parceiros do MERCOSUL, na medida em que reduzia o impacto do acesso preferencial ao mercado brasileiro por parte desses países e introduzia um difícil processo de negociações "triangulares" que tinha de levar em conta não apenas o chamado "patrimônio histórico" da ALADI, mas ainda acordos de alcance parcial que os países do MERCOSUL e seus associados pudessem manter individualmente com outros países latino-americanos membros de outros esquemas integracionistas (caso do México e do NAFTA).


